INFORMATIVO

O Mundo das Famílias

Por Melissa Telles Barufi

Não é assunto sobre o fim da vida…

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A autocuratela não é assunto sobre o fim da vida, mas sim sobre a própria vida. É sobre como você gostaria de ser cuidado e quem você gostaria que cuidasse de você, dos seus assuntos patrimoniais, financeiros e existenciais, caso estivesse em uma situação que não lhe permitisse gerir sua própria vida. Óbvio que não queremos pensar em doenças, mas elas aparecem sem serem convidadas. Concordo – elas não são educadas. 

Anotações sobre: Autocuratela

                                                                                  Melissa Telles Barufi[1]

Você já pensou sobre o assunto?

Caso você nunca tenha pensado sobre autocuratela, te convido a pensar.

A autocuratela não é assunto sobre o fim da vida, mas sim sobre a própria vida. É sobre como você gostaria de ser cuidado e quem você gostaria que cuidasse de você, dos seus assuntos patrimoniais, financeiros e existenciais, caso estivesse em uma situação que não lhe permitisse gerir sua própria vida. Óbvio que não queremos pensar em doenças, mas elas aparecem sem serem convidadas. Concordo – elas não são educadas. 

Autocuratela também não é exclusiva para a velhice, mas um importante instrumento protetivo para planejar a velhice, pois se Deus quiser um dia ela vai chegar!

Iniciar esse ensaio, sobre o tema que cada dia ganha mais espaço na minha vida profissional, e também pessoal, sem, inicialmente, mencionar a Thaís Câmara seria negar a origem dos meus estudos e também o despertar para o tema.

Nesse aspecto, trago breve trecho sobre a reflexão da autora:

Considerando ser um documento jurídico de proteção futura, a pessoa pode escolher antecipadamente o seu próprio curador para o caso de uma incapacidade superveniente, também pode excluir determinadas pessoas dessa função. É possível nesse documento já deixar determinada a forma de administração do seu patrimônio, até com a possibilidade de indicação de pessoas jurídicas para orientar o curador nessa função administrativa. Além disso, ainda é admissível que nesse documento constem os cuidados médicos que aceite ou recuse, de acordo com as suas escolhas pessoais de vida.[2]

Segundo o mestre Nelson Rosenvald:

A autocuratela é um negócio jurídico de eficácia sustida, através do qual a pessoa que se encontra na plenitude de sua integridade psíquica promova a sua autonomia de forma prospectiva, planejando a sua eventual curatela, nas dimensões patrimonial e existencial, a fim de que no período de impossibilidade de autogoverno, existam condições financeiras adequadas para a execução de suas deliberações prévias sobre o cuidado que receberá e a sua compatibilização com as suas crenças, valores e afetos[3]

A autocuratela, assim, parte da definição de que é um documento jurídico de proteção futura a ser utilizado quando a pessoa estiver em situação que não responda por ela. A pessoa que ficará como seu responsável é chamada, juridicamente, de curador. 

O curador será a pessoa que ficará responsável, após prestar compromisso por termo em cartório[4], para cuidar, administrar, zelar pelos bens e vida de alguém que está sem condições de fazer por si mesmo. 

Este curador deverá prestar contas e balanço de sua administração[5]. Não podendo ser dispensado desta obrigação, mesmo sob o fundamento de idoneidade de quem recebe o encargo – exigência legal que indica que a gestão deve ser fiscalizada em benefício e proteção do incapaz. 

Além de responder pelo patrimônio e organização financeira, o curador poderá também ficar incumbido das questões existências de seu curatelado.  

Em relação às funções existenciais, cabe explanar sobre o artigo 85, da Lei 13.146/2015 no qual estabelece que “a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial”, não afetando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, como preceituado em seu parágrafo primeiro. Trata-se de uma curatela limitada à prática de atos patrimoniais, ante a emancipação da pessoa com deficiência, que lhe garante o exercício de direitos da personalidade, em conformidade com o artigo 6º, do mesmo diploma legal.

Assim, o que deverá haver é o equilíbrio necessário para delinear a medida protetiva à pessoa com deficiência no intuito de ver preservada sua autonomia e personalidade, naquilo que lhe é permitido, sem comprometer a proteção exercida pela curatela – que assegurará a dignidade exercida através de outrem.

Isso se dá pelo fato de que os graus de necessidade de intervenção/proteção são distintos, havendo pessoas que se encontram em situações absolutamente incapacitadas para qualquer ato da vida civil, como em situações de estado comatoso.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald discorrem sobre esse equilíbrio necessário:

[…] é preciso compatibilizar a interdição com a tábua axiológica constitucional, razão pela qual a retirada da plena capacidade jurídica de uma pessoa somente se justifica na proteção de sua própria dignidade, devendo o juiz, em cada caso, averiguar o grau de incapacidade pelos efeitos existenciais, e não pelas consequências econômicas da interdição.[6]

Tal ponderação faz-se necessária para evitar a redução do instituto da curatela à mera administração financeira e patrimonial do indivíduo, para uma interpretação mais alargada e social, garantindo a igualdade quanto ao exercício de seus direitos patrimoniais como extrapatrimoniais.

A resposta parece ecoar no artigo 84, § 3º do Estatuto, que permite ao juiz confiar poderes mais amplos ao curador, de acordo com as necessidades e as circunstâncias do caso concreto. 

Trata-se, segundo Joyceane Bezerra de Menezes, de uma “curatela aberta à demanda do curatelado”, cujos poderes atuam como se fossem de representação, mas que não portam tal denominação por uma questão formal[7]. A curatela não poderá ser mera medida excepcional, adstrita tão somente aos atos patrimoniais, devendo permitir

[…] a possibilidade de intervenção do curador, mas sempre com a intenção de realizar o interesse fundamental do curatelado, assim entendido como as suas preferências genuínas, sua percepção do mundo, suas convicções pessoais acerca da própria identidade. Caso o curatelado houver nascido sem qualquer competência volitiva e, por isso, não houver registrado por seu modo de viver, quais seriam esses interesses fundamentais, a autuação do curador deverá se guiar pelo princípio da beneficência, seguindo os padrões respeitáveis à dignidade da pessoa humana e os direitos do curatelado, na tentativa de atender, sempre que possível às suas inclinações e relações afetivas[8].

Assegura-se, deste modo, a funcionalização da curatela que se revela como um instituto de proteção do indivíduo que não está apenas em condições de cuidar de seus bens, mas de si mesmo. 

Trata-se de voltar os olhos para a pessoa, de tal modo que se existirem faculdades intelectuais, ainda que residuais, elas são realizadas para o livre desenvolvimento de sua personalidade, uma vez que lhe são garantidas a titularidade e o exercício de seus direitos, sejam eles patrimoniais ou existenciais.[9]

Assim, o instituto da curatela é decisão esculpida a cada caso concreto, como reflexo da necessidade de cada curatelado, na medida em que sua complexidade – física, intelectual e emocional – são levadas em consideração no momento da decretação.

A figura do curador, nessa toada, se mostra de suma importância e responsabilidade, eis que é aquele no qual vai garantir a expressão existencial do curatelado, dentro do que lhe foi atribuído.

No caso de um indivíduo necessitar de alguém para administrar seus bens e organizar sua dinâmica operacional, sem indicar por documento público a figura de um curador, este será escolhido sem a participação daquele que se mostra o maior interessado – o curatelado.

Vale notar que a lei prescreve quem tem preferência para ser curador. Todavia, não significa que a pessoa indicada na legislação será o curador nomeado, mas sim que terá a preferência.

No entanto, em muitas situações nem sempre a pessoa indicada na lei é, de fato, a pessoa melhor indicada para realizar os atos a serem praticados no exercício da curatela. Lembrando que a pessoa que faz sua autocuratela pode indicar quem lhe convier, não precisando respeitar a preferência legal.

A autocuratela poderá ser realizada, preferencialmente, por meio de escritura pública lavrada em Cartório de Notas, sendo importante que o documento identifique o futuro curador o limite de suas atribuições, principalmente se o declarante deseja incluir os cuidados patrimoniais e de saúde.

Afora a segurança proporcionada ao curatelado, proteção patrimonial e efetivação da vontade, o documento de autocuratela reduz as disputas e conflitos familiares que se instalam no curso dos processos de curatela – reduzindo despesas, litígios e tempo entre os envolvidos.

Necessariamente, não é tarefa fácil escolher o próprio curador, mas acredito que todos deveriam, no mínimo, pensar sobre o assunto. 


[1]Advogada, inscrita na OAB/RS sob nº 68.643, sócia fundadora do escritório de advocacia Melissa Telles Barufi. Conselheira da OAB/RS, Presidente da Comissão Nacional da Infância e Juventude do IBDFAM. Presidente do Instituto Proteger

[2]Coelho, Thaís Câmara Maia Fernandes. Autocuratela evita discussões judiciais entre familiares.

Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/noticias/6078/Autocuratela+evita+discussões+judiciais+entre+familiares/>. Acesso em 21 jul.2020.

[3]Rosenvald, Nelson. 犀利士 rong>Os confins da autocuratela. Disponível em: <https://www.nelsonrosenvald.info/single-post/2017/05/16/Os-confins-da-autocuratela/>. Acesso em 28.jul.2020.

[4]Artigo 759, parágrafo 1º, do CPC: 

[5]Artigos 1.755, 1.756 e 1.757, c.c. artigo 1.774, todos do Código Civil e artigo 84, parágrafo 4º, da Lei 13.146/15.

[6]FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações.5.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2011, p. 313.

[7]MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo no Brasil após a Convenção sobre a Proteção da Pessoa com Deficiência: impactos do novo CPC e do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Civilistica.com: revista eletrônica de direito civil, Rio de Janeiro, ano 4, n. 1, 2015, p. 17. Disponível em: <http://civilistica.com/o-direito-protetivo-no-brasil/>. Acesso em: 30 jul. 2020.

[8]Idem, p. 18. 

[9]TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Integridade psíquica e capacidade de exercício.Revista trimestral de direito civil,Rio de Janeiro, v. 33, p. 3-36, jan./mar. 2008.

Melissa Telles Barufi

Advogada inscrita na OAB/RS 68.643, sócia do Escritório de Advocacia Melissa Telles Barufi. Presidente da Comissão Nacional da Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM Presidente do Instituto Proteger Conselheira da OAB/RS – 2019/2021 Secretária Geral Adjunta da Caixa de Assistência dos Advogados da OAB/RS – CAA/RS – 2016/2018

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